segunda-feira, 29 de março de 2010

As Curtas - Je Vous Salue, Sarajevo

Je Vous Salue, Sarajevo, de Jean-Luc Godard


















De certa forma, o medo é a filha de Deus, redimida na noite de Sexta-feira Santa. Ela não é bela mas enganada, maldita e desapropriada de tudo. Mas não nos enganemos. Ela vela pela agonia de toda a humanidade, ela intercede pelo Homem. Para isso há uma regra e uma excepção. A cultura é a regra e a arte é a excepção. Todos falam da regra: os cigarros, o computador, as camisas, televisão, turismo, guerra. Ninguém fala da excepção. Não é falado. Está escrito: Flaubert, Dostoyevski. Está composto: Gershwin, Mozart. Está pintado: Cézanne, Vermeer. Está filmado: Antonioni, Vigo. Ou é vivido, e ali está a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra é desejar a morte da excepção. Assim a regra da cultura europeia é organizar a morte da arte de viver que se mantém florescente. Quando chegar a hora de fechar o livro, não sentirei nenhum pesar. Vi tanta gente viver tão mal e tantos morrer tão bem.

Em dois minutos, Godard manipula-nos com diversos segmentos da mesma fotografia, que retrata abusos durante a Guerra dos Balcãs, a mais crítica situação vivida na Europa pós-Segunda Guerra Mundial. Com um texto mais reflexivo do que alguns com que Godard nos presenteou e com música de Arvo Pärt, um belíssimo ensaio sobre a guerra, a fotografia, a manipulação e a perspectiva.

sábado, 27 de março de 2010

The Dreamers

The Dreamers, de Bernardo Bertolucci.



















Uma porta aberta para Paris, para o cinema, para o espírito de 68, para a juventude.

Matthew diz-nos que na Cinemateca se senta sempre na fila da frente, tal como os outros insaciáveis, para receber as imagens enquanto estão frescas, enquanto estão novas.

E é num profundo exercício de cinefilia que Bertolucci nos envolve desde o início, com a maneira ímpar com que “pinta” cada cena, com a magnífica Cinémathèque Française, as manifestações contra o afastamento de Henri Langlois e a aparição de Jean-Pierre Léaud, imitando o discurso por ele proferido mais de 30 anos antes, carregando o filme de uma nostalgia que arrastará até aos créditos finais.

Três jovens quebram convenções, apaixonam-se, experimentam, discutem Clapton e Hendrix, Keaton e Chaplin, discutem a Guerra do Vietname, discutem o maoísmo, decidem morrer... tudo pontuado por cenas clássicas do cinema europeu e americano.

Tentam unir pelos corpos aquilo que apenas o cinema pode unir.

Vivem juntos num clássico e espaçoso apartamento parisiense. Raramente saem. Lá fora está a revolução. O Maio de 68 aproxima-se. Theo e Isabelle vivem num microcosmos para o qual arrastam Matthew, fingem para eles próprios não saber o que se passa nas ruas, quando eles próprios são reflexo disso. Discutem Mao e bebem vinho. Até que, pela janela, o microcosmos é quebrado. “Dans la rue!”.

Serão forçados a descobrir-se, como o leão que se torna criança.

quinta-feira, 25 de março de 2010

As Cenas - My Own Private Idaho

My Own Private Idaho, de Gus Van Sant.



















O filme que imortalizou na tela River Phoenix e a última grande conquista de Gus Van Sant no cinema independente antes da sua curta experiência no mais mainstream.

Mas se o filme é brilhante na sua composição desafiante, nas belíssimas imagens do Noroeste dos USA, nas manias de autor de Van Sant e no retrato de um submundo que a América dos anos 90 parecia ignorar, aqui fala-se de cenas e nesta, o mérito vai inteiro para River Phoenix.

Completamente reescrita pelo próprio, esta cena revela um pouco do tormento de Mike, um prostituto de Portland que sofre de narcolepsia, dando à personagem dimensões que até à altura desconhecíamos e que o arrastarão para uma espiral de sofrimento que o próprio acabará por descobrir que não tem fim, apenas começo.

A expressão alienada, sensível e inocente que River empresta a Mike em My Own Private Idaho é a imagem da juventude pela qual Van Sant se apaixonou e à qual voltará na Trilogia da Morte.

Prólogo

Je ne veux parler que de cinéma... Pourquoi parler d'autre chose? Avec le cinéma on parle de tout, on arrive à tout.


Jean-Luc Godard.

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