domingo, 25 de abril de 2010

Il Conformista

Il Conformista, de Bernardo Bertolucci.



















A 25 de Abril de 2010, 36º aniversário da revolução que clama não poder ser esquecida, trago Il Conformista de Bernardo Bertolucci.

A que para mim é a verdadeira obra-prima do cineasta italiano toca de forma sensível no fascismo e transporta a sua reflexão para domínios mais vastos e intemporais.

Interpretado pelo sempre misterioso Jean-Louis Trintignant, Marcello Clerici é um homem que abraçou o fascismo na Itália de Mussolini. Não por convicção mas por necessidade de integração. Por conformismo. Pela busca da “normalidade”.

Durante o filme, vemos Clerici progressivamente a anular-se a si próprio. A supressão da individualidade como condição para o sucesso de qualquer autoritarismo.

Clerici aceita a tarefa de matar o seu antigo professor, Quadri, para subir na hierarquia do Partido Nacional Fascista italiano. É o mote para a viagem que se segue, em que se faz acompanhar pela mulher que despreza e pelo amigo e colaborador Manganiello e na qual encontra Quadri e a sua mulher Anna, sensual, provocadora e idealista. Clerici é ainda frequentemente acompanhado por Italo, que acredita verdadeiramente no fascismo e é invisual.

Anna Quadri encanta Marcello, e é o seu oposto em Il Conformista. Ambos Bertolucci sugere serem bissexuais, Anna vive em Paris com o marido e é directa e livre, Marcello é obscuro e aterrorizado, vive em Itália. “A caverna”, segundo o professor Quadri, numa alusão à alegoria de Platão.

De realçar é a cena onde Marcello se confessa, antes de casar. Viajamos para a sua infância, na qual foi assediado por um motorista que acabou por matar. Voltamos para o confessionário, onde o diálogo com o padre é marcado por discussões acerca da normalidade e da aceitação pela sociedade, que é o que Marcello sempre perseguiu. Talvez porque apenas vê sombras que toma como sendo a realidade.
Esta magnífica cena termina com o padre a perguntar se faz parte de um desses grupos subversivos, Marcello responde que não. Diz que faz parte daqueles que perseguem os subversivos. “Ego te absolvo a peccatis tuis”.

ll Conformista está repleto de cenas simbólicas e de uma beleza ímpar. As folhas outonais que viriam a inspirar Coppola para The Godfather; a viagem de comboio de Clerici com a sua companheira, uma “burguesa trivial”, com um inebriante jogo de cores; a referência directa à alegoria da caverna no escritório do professor Quadri; a cena da dança; o assassinato na neve dos Alpes, belo e cruel. Poderia ficar aqui eternamente até ter referido cada fotograma cuidadosamente “pintado” de Il Conformista, com perspectivas e jogos de cores e luz únicos. Não tenho dúvidas que Vittorio Storaro conseguiu aqui um dos melhores trabalhos de fotografia da história do cinema, que roça a perfeição.

A banda sonora, expressão máxima da solidão de Marcello, ficou a cargo de Georges Delerue.

O filme acaba com a queda do regime de Mussolini e com Marcello a pensar ter reconhecido num jovem a figura de Lino, o motorista que o seduziu, que estava agora acompanhado por outro homem. Denuncia-o e denuncia também Italo, por ser fascista. Lino foge. A multidão passa em festa, entoando o hino italiano. Marcello Clerici não é absorvido pela multidão e fica sozinho, isolado, de novo. Olha para trás e vê o homem que acompanhava Lino...

terça-feira, 20 de abril de 2010

As Curtas - Gadajace Glowy

Gadajace Glowy, de Krzysztof Kieslowski.



















Sinto-me completamente incapaz de exprimir em palavras o talento de Kieslowski. Sinto que a trilogia Bleu/Blanc/Rouge e o Dekalog são duas das obras filosoficamente mais relevantes da história do cinema e duas das mais genuinamente emotivas. Talvez pela beleza que encerram, não sou capaz de escrever sobre elas.

Mas decidi trazer um trabalho peculiar do realizador polaco. Kieslowski recolheu entrevistas a cidadãos polacos nascidos nos últimos cem anos, perguntando quem são e o que querem na vida. E o resultado são estes dezasseis minutos, dados a conhecer em 1980 sob o título "Gadajace Glowy".

Pode não ser um trabalho cinematográfico de excelência, mas é certamente um prenúncio daquilo a que Kieslowski nos habituaria: um cinema profundamente humanista, que procura perguntas básicas da filosofia e que responde evocando verdadeiras emoções, aquilo que segundo Kieslowski, une as pessoas.

Além de um mestre da imagem, um mestre da alma humana.




quinta-feira, 15 de abril de 2010

If....

If...., de Lindsay Anderson.



















Depois de The Dreamers, estamos de volta a 1968 e à contracultura, num dos mais memoráveis ensaios sobre a sociedade. Voltamos a ser leão.

O cenário é uma escola britânica que funciona em regime de internato e que baseia o seu funcionamento, como tantas outras, na ordem, na repressão e na disciplina. Tudo é controlado ao mais infímo pormenor, a tradição britânica do “fagging” obriga os alunos mais novos a servir os mais velhos, não são permitidos desvios à ordem e à hierarquia e os castigos chegam a dolorosas punições físicas.

Visto o cenário, passemos ao herói. O herói, ou anti-herói, é Mick Travis. A postura subversiva e desafiadora do jovem é magistralmente personificada por Malcolm McDowell, no papel que o lançaria para a imortalidade de A Clockwork Orange e do seu mítico Alex DeLarge. E o carisma de McDowell não deixa dúvidas e permite ver em Mick Travis muito de Alex DeLarge.

Lindsay Anderson filma o seu filme mais controverso, talvez por pôr em causa os valores britânicos de religião e educação, com recurso a alternância entre cinematografia a cores e a preto e branco, divide o filme em capítulos e deixa-nos frequentemente na dúvida sobre a realidade na narrativa do que estamos a ver.

Apesar de haver imensas sequências memoráveis no filme, como a sensação contagiante de liberdade com a fuga dos crusaders da escola que é seguida pela fantasia selvagem de Travis com uma mulher, optei por relatar com imagens apenas uma cena, não é coincidência.
É a conquista. É o “grand finale” e é o supremo toque surrealista e alegórico do filme.

As discussões continuam e continuarão sobre se a cena encaixa no filme como sonho ou realidade. O que não será tão relevante como saber que encaixa na sociedade como símbolo da rebelião, da conquista, da juventude, do inconformismo. E encaixa em Mick Travis, nos crusaders e em nós como a inversão de poderes entre a sociedade e o indivíduo, como a rejeição da educação baseada na tirania, como a rejeição daqueles que obedecem para poder mandar, como a rejeição da repressão sexual tão familiar a Lindsay Anderson, como a afirmação da liberdade e da individualidade que o sistema insiste em negar.

Mick é a humanidade, a fantasia dentro do ultra-realismo.

sábado, 10 de abril de 2010

La Nuit Américaine

La Nuit Américaine, de François Truffaut



















Muitos foram os que tentaram fazer um filme sobre fazer filmes. Talvez nenhum o tenha feito de forma tão apaixonada como Truffaut fez La Nuit Américaine.

Acredito que para compreender o mais básico de fazer um filme, basta ver 8 ½ de Fellini e este La Nuit Américaine de Truffaut. Complementam-se excepcionalmente. Tão diferentes um do outro, Fellini retratou as dificuldades de um realizador em surgir com uma ideia e vasculhou a própria vida e mente, Truffaut mostrou-nos simplesmente o que é estar a rodar o filme, com todos os altos e baixos. Num momento do filme, o realizador Ferrand, representado pelo próprio Truffaut, afirma que fazer um filme é como andar de carruagem pelo faroeste, se ao início se espera uma boa viagem, no final apenas se espera chegar ao destino.

O filme passa-se inteiramente no local de rodagem de um outro filme, um estúdio na belíssima cidade de Nice, no Sul de França. O filme dentro do filme chama-se “Je Vous Présente Pamela”. Os actores chegam, filmam as suas cenas e partem. Entre eles Severine, destruída pelo alcóol, nervos e insegurança; Julie Baker, instável estrela de Hollywood; Alphonse, sensível e profundamente apaixonado; Alexandre, actor experiente a tentar enquadrar-se com a sua orientação sexual ou Stacey, que se descobre estar grávida. A viagem a que Ferrand se propõe é dirigir personagens e sobretudo dirigir pessoas, à frente e atrás da câmara. Segundo ele, um realizador é alguém a quem são feitas muitas perguntas, e às vezes sabe a resposta. Um carta de amor ao cinema de um dos seus maiores apaixonados, que o sublinha com sequências oníricas em que recorda a sua infância com os filmes.

Apesar de assistirmos a toda a filmagem, nunca percebemos realmente a validade do “Je Vous Présente Pamela”. Os próprios actores não percebem. Pensamos não ter visto nada. Saltamos de cena em cena, de crise em crise, de falha em falha. Sempre a desejar apenas “chegar ao destino”. Sempre “on the run”. Mas sempre com ternura. Definitivamente Truffaut.

As três camadas do filme, de Truffaut realizador para Truffaut actor para personagem Ferrand, são espelho da energia e da verdade que o filme encerra, pela qual pugnaram críticos e realizadores da Nouvelle Vague.

De realçar é a actuação de Jean-Pierre Léaud, no que é talvez o melhor papel da sua carreira. Com referências óbvias à personagem de Antoine Doinel, este Alphonse ama o cinema e as mulheres. Ama Liliane. É um eterno apaixonado. Inocente e terno. Jean-Pierre Léaud deu muito dele próprio e de Truffaut. Dificilmente o cinema voltará a conhecer igual relação realizador-actor. Para mim, fica uma das interpretações mais marcantes da minha experiência como cinéfilo.

Diz Ferrand a Alphonse, ou talvez Truffaut a Léaud, que pessoas como eles só nos filmes podem ser felizes. Um hino ao cinema.

terça-feira, 6 de abril de 2010

As Cenas - Carne Trémula

Carne Trémula, de Pedro Almodóvar.



















Quer se goste ou não do cinema de Pedro Almodóvar, tenho para mim que poucos serão os que conseguem não levar consigo pedaços do mesmo. Foi a certeza a que cheguei quando, ao ver Carne Trémula, me deparei com esta cena sexual.

Envolta em desejo, tema central na obra do cineasta espanhol, começa de forma lindíssima com o movimento harmonioso dos corpos, cresce em tensão e intensidade até se tornarem um só. E é quando passamos de uma das mais belas imagens que Almodóvar já criou para o nascer do sol no céu de Madrid, a nova Madrid que nasce, diferente.

A cena ganhará contornos de catarse para Elena a seguir, quando emerge a culpa, o remorso, a traição.

A escolha musical é mais uma vez irrepreensível, com o intenso e sofrido “Somos” da mexicana Chavela Vargas.

Carne Trémula é também um filme politizado, com imensas camadas que remetem para a transformação social do pós-franquismo, e constitui a maior das tentativas de Almodóvar para fechar de vez o fosso entre a Espanha de Franco e a Espanha moderna, a Espanha dos Jogos Olímpicos, a Espanha da cosmopolita Madrid, a Espanha... de Almodóvar.

sábado, 3 de abril de 2010

Le Feu Follet

Le Feu Follet, de Louis Malle.



















Desde o primeiro shot que Louis Malle nos faz mergulhar na complexidade da personagem de Alain Leroy, magnificamente interpretada por Maurice Ronet, com um close-up num olhar que transparece insegurança.

Alain Leroy é um antigo dandy parisiense que se perdeu nas malhas do alcoolismo, viu a sua mulher afastar-se dele por esse motivo e internou-se numa clínica para recuperação.

Alain Leroy está recuperado, mas não vê motivos para se voltar a integrar na sociedade. E assim começa uma das mais magníficas obras existencialistas que a tela já conheceu.

Malle viaja com Alain pelos dias que o separam do destino que ele próprio traçou, marcados por encontros que falham em oferecer soluções e por ritmos a que Alain não se consegue ajustar. Afinal, tudo correrá igual sem ele.

O subtil trabalho de câmara parece ser o único a entender o desespero de Alain, pontuado pelas composições oníricas e minimalistas de Erik Satie.

É o retrato intimista, com frequentes close-ups, de um homem que talvez seja o melhor que o cinema conseguiu retirar do espírito da filosofia e literatura existencialista, bem patente nas últimas palavras que escreveu.
É um estudo de personagem que não nos chega a revelar se os últimos dias de Alain foram um adeus ao imenso vazio do mundo ou a última tentativa de estabelecer com ele uma relação.
“Il n'y a qu'un problème philosophique vraiment sérieux: c'est le suicide. Juger que la vie vaut ou ne vaut pas la peine d'être vécue, c'est répondre à la question fondamentale de la philosophie.”
Albert Camus, Le Mythe de Sisyphe

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