domingo, 16 de maio de 2010

Sügisball

Sügisball, de Veiko Öunpuu.



















Veiko Öunpuu abre surpreendentemente o filme com Fernando Pessoa e a nós apetece-nos acabar o filme a dar à Estónia as boas-vindas à União Europeia, depois de um vibrante exercício cinematográfico que espalha por todos os frames uma muito singular sensação de cinema europeu, tanto no estilo como na temática.

Durante as cerca de duas horas o estónio faz-nos chocar contra as suas belíssimas imagens do imponente pano de fundo de Sügisball: o bairro de Lasnamäe, numa zona pobre e descuidada de Tallin onde prolifera o cimento do imponente e impessoal urbanismo soviético. E é a frieza inevitável que a construção soviética transmite que se alia de forma única ao estilo tão europeu da fotografia de Sügisball e à humanidade que se procura nas personagens.

As crises das personagens daquele edíficio não são diferentes das crises das personagens do outro lado da rua. Como diz Mati, em cada apartamento há alguém a tentar ser feliz, gerações e famílias inteiras, e as vidas dissipam-se como o vento. E o que sobra disso tudo?
As crises das personagens de Sügisball não são diferentes das nossas. A humanidade da obra é universal. Apenas o cenário é marcadamente estónio. Se Sügisball tem algo de cru, vem do cenário e é um constante apelo a um exagerado realismo. É como se, para nós, a ilusão ali não funcionasse. Eles não podem só “ir vivendo”. O bairro de Lasnamäe obriga-nos a ver o quão miseráveis eles são. O quão miseráveis somos.

Em todas as personagens se parece reflectir o absurdo da existência, tanto que a mulher do arquitecto o acusa de ser como uma personagem de Bergman, mas menos humano. Mas não é humanidade que falta às personagens, falta-lhes a oportunidade. Falta que se dêem a eles próprios a oportunidade. E é neste processo que o filme caminha para o fim, no processo de se tornarem mais humanos, mais pessoais. A dor ou a violência, como catarse, acaba por permitir às personagens libertarem-se, como a belíssima sequência da dança de Maurer já pronunciara.
E assim renascem. Para que futuro? Não sabemos.
Veiko Ounpuu acaba dedicando o filme aos “homens de bom coração e fígado fraco, que vagueiam sozinhos à noite, em roupa interior”.

8 comentários:

  1. que boa surpresa encarar aqui com este post...um filme que não merecia ser tão discreto

    charlie

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  2. A mim também me apanhou de surpresa. O Rúben mata-me se eu não vir o Baile de Outono em breve (e já vão 6 meses de espera :P) Da primeira meia hora que pude ver, agradou-me o realismo e como o estado interior das personagens era mostrado. Fernando Pessoa encontra-se bem presente - logo de início, com a citação e lá para uma cena, que também acho que falam dele, numa cama (?). Pronto, o teu texto foi impulsionador para o ver na totalidade. Depois direi o que achei ;)

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  3. Completamente de acordo que não devia ser tão discreto. Da Estónia tinha visto o Klass, uma espécie de Elephant, que era interessante. Mas Sugisball ultrapassou as minhas expectativas. E mesmo em termos de circuito de festivais merecia muito mais prémios do que apenas o prémio Horizontes em Veneza.

    Fernando Pessoa foi uma surpresa. Até porque é algo que parece perfeitamente acessório, deve ser mesmo uma paixão do realizador. Sim deves seguir a sugestão, do Rúben e minha. :)

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  4. Há um quê que me fascina e ao mesmo tempo me põe ignorante em relação a este filme. Mesmo assim gostei de o ver, há tempos atrás.

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  5. Uma bela peça de cinema... Daqueles que revia vezes sem conta. Lembro-me que o apanhei já a meio, numa tarde do verão passado, num dos tvcine. O título deixou-me curioso, e, por uma feliz coincidência, liguei a televisão quando o filme ia na cena da cama em que o recepcionista e a mulher falam de Pessoa. Decidi ver do início, depois, recorrendo a meios não tão politicamente correctos como seria de desejar, e pude apreciar na totalidade a beleza deste baile de outono, em que, como tu salientas no texto, somos todos dançarinos. Destaque para o final, para as cenas em que os dois casais se confrontam - a tal conversa em que a comparação com Bergman é feita, e a cena final da reconciliação, que é, a meu ver, das coisas mais sinceras e realistas que já vi em ficção. Outras cenas que me ficaram na memória foram aquela em que o Mati está a escrever poesia, um exercício de curiosa introspecção na mente da personagem, e a cena em que a mulher do... bom, já não me lembro do nome, mas do indivíduo de óculos, fala sobre o medo que lhe tira o sono. Um medo comum, banal, mas acima de tudo natural e essencialmente humano. Belo exemplar de cinema, indeed. (e, Flávio, não te recomendo mais nada, demoras sempre meio ano para conferir as minhas sugestões. mas isso é outra conversa)

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  6. Hey, obrigado Frederico e Rúben.

    Rúben, de facto apontaste aí umas cenas de grande realismo, em que nunca tinha pensado. O filme consegue um balanço muito estranho entre essas cenas e algumas mais a roçar o surreal.

    E sim, somos todos dançarinos. É muito humano nesse sentido, as questões que as personagens levantam são comuns a quase todos nós.

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  7. Fiquei curioso acerca disto. Não conheço nada da Estónia.

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  8. Sügisball vale muito a pena Álvaro, por tudo o que já foi dito. E apesar de eu só ter visto dois filmes, pelo nomes que tenho visto o cinema estónio tem crescido a bom ritmo para um país tão pequeno.

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